Luiz Borges

CPV042 - Soberano. O boi, o chifre, o laço e o retrato

Atualizado: 3 de nov de 2023

Na história da música caipira várias canções fizeram muito sucesso na época que foram lançadas e romperam a barreira do tempo de do espaço, sendo regravadas e ouvidas até hoje. Em alguns casos, o sucesso foi tanto que, além de regravações, elas ganharam canções em resposta e até continuações das histórias por elas contadas e cantadas.

E na prosa de hoje vou contar pra você a história e os bastidores de uma das modas de violas mais icônicas da música caipira. Escrita em 1953 e gravada inicialmente pela dupla “Zé Carreiro e Carreirinho” em 1955, fez e faz Tanto sucesso que serviu de inspiração pra várias respostas e continuações da história do boi mais famoso do cancioneiro caipira: O Boi Soberano. Vai assuntando...

Izaltino Gonçalves de Paula: O compositor

Curioso de coração. É assim que se intitula Izaltino Gonçalves de Paula, poeta e compositor, autor da letra de uma das modas de viola mais regravadas e cantadas de todos os tempos, Boi Soberano.

Izaltino Gonçalves - Foto by Sergio Isso

O poeta nasceu na cidade de São José do Rio Preto, em São Paulo, no dia 14 de abril de 1929, filho do casal Lázaro Gonçalves e Ambrósia Victória de Oliveira.

O homem que se expressa em versos e rimas nunca frequentou escola, mas aprendeu, desde os 6 anos, a juntar letras e a compreendê-las, graças à sua boa memória e às irmãs que o ensinavam as letras. A partir daí, matutava até formar as palavras. Antes disso, com apenas 5 anos de idade, acompanhou o pai e os irmãos na roça para a colheita de algodão.

Em 1936, a família mudaria para a área rural de Tanabi. Eram 12 irmãos: Oito mulheres e quatro homens. Eles trabalhavam na roça e faziam serviço de carpinteiro, construindo casas, porteiras, carroças e carros de boi.

Izaltino conta que lá na roça não tinha televisão, não tinha rádio, não tinha vitrola, não tinha nada, por isso ele tocava um violãozinho e cantava uns versos pra alegrar a rapaziada.

A primeira música, que ele compôs, aos 22 anos, foi Penacho, gravada em 1953 por Tonico e Tinoco.

Boi Soberano viria apenas três anos depois, em 1954 e foi gravada inicialmente por “Zé Carreiro e Carreirinho”, em 1955.

Aos trinta anos, casou-se com Laurinda Batóchio, com quem teve duas filhas e um filho.

Ele lembra da época em que se interessou pelo ofício de relojoeiro, profissão que o acompanhou por mais de quatro décadas. Ainda morava no campo, e vendeu o cavalo para fazer um curso à distância. Conquistou clientela e, um ano depois do casamento, foi morar na cidade, no início da década de 1960.


O Boi Soberano

Boi Soberano foi gravada inicialmente por Zé Carreiro e Carreirinho. Depois, por Pedro Bento e Zé da Estrada, Tião Carreiro e Pardinho e vários outros artistas. Agora vamos ouvir a primeira gravação de Boi Soberano, de 1955, na voz de Zé Carreiro e Carreirinho.

Me lembro e tenho saudade do tempo que vai ficando
 
Do tempo de boiadeiro que eu vivia viajando
 
Eu nunca tinha tristeza, vivia sempre cantando
 
Mês e mês cortando estrada no meu cavalo ruano
Sempre lidando com gado, desde a idade de 15 anos
 
Não me esqueço de um transporte, 600 bois cuiabanos
 
No meio tinha um boi preto por nome de Soberano
Na hora da despedida, o fazendeiro foi falando
 
Cuidado com esse boi que nas guampas é leviano
 
Esse boi é criminoso, já me fez diversos danos
 
Tocamos pelas estradas, naquilo sempre pensando
Na cidade de Barretos, na hora que eu fui chegando
 
A boiada estourou, uai, só via gente gritando
 
Foi mesmo uma tirania, na frente ia o Soberano

A partir de agora, vamos ouvir as duas ultimas estrofes nas vozes e viola dos jovens Mayck & Lyan, que regravaram Boi Soberano em 2020. Ou seja, 65 anos depois da primeira gravação. Vai assuntando:

O comércio da cidade, as portas foram fechando
 
Na rua tinha um menino, decerto estava brincando
 
Quando ele viu que morria, de susto foi desmaiando Coitadinho, debruçou na frente do Soberano
O Soberano parou, uai, em cima ficou bufando
 
Rebatendo com o chifre os bois que vinham passando
 
Naquilo, o pai da criança de longe vinha gritando
Se esse boi matar meu filho, eu mato quem vai tocando
 
Quando viu seu filho vivo e o boi por ele velando
 
Caiu de joelho por terra e para deus foi implorando
 
Salvai, meu anjo da guarda, deste momento tirano
Quando passou a boiada, o boi foi se retirando
 
Veio o pai dessa criança e comprou o Soberano
 
Esse boi salvou meu filho, ninguém mata o Soberano

O Chifre do Boi Soberano

E a história do boi soberano fez tanto sucesso que mereceu continuações: Apesar do pai da criança ter comprado o boi soberano e afirmado que ninguém o mataria, o tal boi não era imortal e um dia, acredito eu, deva ter morrido de morte morrida. Pois assunta só o que aconteceu depois que o Boi Soberano partiu fora do combinado.

Na cidade de Andradina um boiadeiro chegou
 
Com mil e quinhentos bois, com destino ao matador
 
Com latidos de cachorro a boiada estourou
 
Foi grande a correria, era só grito que ouvia
 
Não tinha quem socorria, mais um milagre deus mandou!
A boiada esparramou pelo centro da cidade
 
Batendo os cascos na rua parecia tempestade
 
tinha um criança brincando em sua simplicidade
 
Levaram um grande espanto, foi grito por todo canto
 
Por milagre de algum Santo não houve fatalidade.
Apareceu um berranteiro com um berrante repicando
 
Naquele mesmo instante a boiada foi parando
 
Para perto do peão a boiada foi chegando
 
Era um gadão de raça, ficaram todos sem graça
 
Sem fazer mais ameaça, vinham todos berrando!
Com o som desse berrante vi muita gente chorando
 
Cheguei perto do peão e fui logo perguntando
 
Pela marca do berrante, assim ele foi falando:
 
Marca nele não há, você pode acreditar,
 
Este berrante que aqui está é o chifre do Soberano!
O Soberano morreu mais sua fama ficou
 
Do couro foi feito um laço que até hoje não quebrou
 
Do chifre este berrante; o meu pai quem fabricou
 
Recebi como herança, e guardo como lembrança
 
Eu sou aquela criança que o Soberano salvou!

O Laço do Boi Soberano

O Soberano morreu mais sua fama ficou.

Do couro foi feito um laço que até hoje não quebrou.

ABEL E CAIM assuntaram esse trecho e logo emendaram...

De São Paulo a Goiás um fazendeiro seguia
 
O dia estava chuvoso a pista escorregadia
 
Seu automóvel de luxo na chuvarada rompia
 
E chegando no rio Grande pra fazer a travessia
 
Numa forte derrapada saiu fora da estrada
 
E dentro do rio caía
Lutando desesperado do seu carro ele saiu
 
O seu grito de socorro de longe um peão ouviu
 
Galopando seu cavalo o fazendeiro ele viu
 
Entre as chuvas que caía com firmeza conseguiu
 
Jogar seu laço ligeiro e laçando o fazendeiro
 
Arrastou fora do rio ai
O fazendeiro tremendo com a voz entrecortada
 
Foi agradecendo o peão contando a vida passada
 
É a segunda vez que vejo minha vida ameaçada
 
Na minha saudosa infância que sempre será lembrada
 
Na cidade de Barretos fui salvo por um boi preto
 
De um estouro de boiada
O peão disse esse boi que o senhor está falando
 
Há muito tempo morreu, mas a fama vai ficando
 
E mesmo depois de morto continua lhe salvando
 
Ele deixou seu valor ai neste meu laço leviano
 
Este laço é meu tesouro ele foi feito do couro
 
Do famoso soberano

Retrato do Boi Soberano

Veja você que além do chifre o do laço, do Boi Soberano também restou um retrato.

E dessa vez quem conta a história é Tião Carreiro e Pardinho.

No braço desta viola quero contar quem eu sou
 
No meu tempo de menino este caso se passou
 
Fiquei ciente da história porque meu pai me conto
 
O velhinho foi falando com a voz quase apagando
 
Do seus olhos marejando
 
Duas lágrimas rolou
Meu filho nunca duvide do poder do criador
 
O retrato de um boi preto nesta hora me mostrou
 
Esse boi é o soberano que um dia lhe salvou
 
Não me sai mais do sentido quando eu vi você perdido
 
Na hora fiz um pedido
 
E o milagre Deus mandou
Na cidade de Barretos muita gente presenciou
 
O passar de uma boiada com destino ao matador
 
Repiquei o meu berrante quando a boiada estorou
 
Nesse momento tirano você estava bricando
 
Quando o boi Soberano
 
Na sua frente parou
Os grito dos boiadeiro de muito longe escutou
 
A rua cobriu de poeira quando a boiada passou
 
Quem assistiu a passagem de emoção até chorou
 
Esse boi lhe defendia com tamanha valentia
 
Que até chorei de alegria
 
E o povo se admirou
Este caso do passado assim meu pai me contou
 
Do milagre acontecido eu fiquei conhecedor
 
Fui crescendo e fiquei moço hoje sou um cantador
 
Vou seguindo meu destino e por um milagre divino
 
E eu sou aquele menino
 
Que o Soberano salvou

O Legado de Izaltino Gonçalves de Paula

Izaltino calcula que compôs ‘beirando 30 músicas’ e que nunca parou de escrever.

Possui cadernos cheios de poesias.

Chora, Morena, Chora foi gravada por Vieira e Vieirinha, Assunta aí...

Pequeno não é Pedaço, foi gravada por Cacique e Pajé.

Segundo o Sr. Izaltino

A boa música tem que ter suspense. A gente começa uma moda e as pessoas aguardam um final. Então eu mudo o final. Se o boi Soberano tivesse matado o menino, não teria novidade nenhuma, era o esperado. Mas o boi salvou o menino, esse é o suspense, a novidade. É difícil achar um bom tema e o mais difícil ainda é saber contá-lo.

Mas a história do tal Boi Soberano aconteceu de fato, ou foi só um causo?

Seu Izaltino lembra que, quando decidiu fazer uma moda de boi, começou a pensar em um nome com a inicial consoante. Antes de chegar a Soberano, cogitou batizá-lo de Cigano, Minuano e Tucano. A história do boi-herói que salva o menino quando a boiada estoura em Barretos é pura ficção. Ele mesmo atesta em uma entrevista que concedeu ao Cadero de Cultura, do Diário da Região, em São José do Rio Preto. Na ocasião ele conta o seguinte:

Não é real, nenhum compositor gosta de escrever coisas reais. É igual contar piada que todo mundo conhece. Quem vai comprar o disco por causa daquilo? Eu criei a história.

De qualquer forma, Izaltino Gonçalves é um cronista das coisas relacionadas à lida rural, que alicerça nossa cultura e escreve coisas que profundamente nos emocionam.

E quer saber de uma coisa... Mesmo sendo uma ficção, A história do Boi Soberano tem um lugar cativo no coração deste caipira que vos fala.

Obrigado, Senhor Izaltino Gonçalves de Paula, por seu legado poético e por inspirar novas rimas caipiras!


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Fonte:

  • Caderno de Cultura do Diário da Região São José do Rio Preto, 14/02/2016;

  • Instituto Memória Musical Brasileira (IMMuB);

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